terça-feira, 19 de outubro de 2010

Dia das [Cria]nças

Dia das [Cria]nças


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Era uma noite normal, tudo estava no seu devido lugar.
Meu cotovelo surrado por um dia de trabalho repousava mais uma vez naquele balcão sujo do Armazém de seu Salim, havia pedido o de sempre, duas doses de 88 e um chouriço que provavelmente estava ali há mais de uma semana. Apreciava o chouriço, não por ter sido feito pelas mãos de uma das belas filhas do dono do bar, mais sim pelo seu delicioso gosto de ranço, que despistava o ardor daquele maldito vicio.
Tudo seguia normal, João e Chico jogavam suas 10 fichas de sinuca diárias, e entre uma tacada e outra comentavam algo sobre política nacional e suas convicções, os dois jogavam sempre, o placar sempre o mesmo, 6 a 4 ou 4 a 6, vez enquando empatavam, e isso gerava mais uma rodada, pois o empate ali não era permitido.
Nunca vi sentido em tal duelo, os dois sempre estavam lá nos mesmos horários, e todos os dias comentavam sobre as mesmas coisas, jogavam na mesma mesa, com os mesmos tacos, e dividiam a mesma cerveja sem variância de marca ou preço. Lá pela quinta partida João repousava o taco na beirada do balcão e enquanto reclamava da maldita sorte de Chico, pedia um copo de água da torneira para uma das filhas de seu Salim, fazia um comentário cretino para a moça, e recebia um olhar de reprovação de seu Salim, que à essa hora já repousava na rede  por traz do balcão.
“Vá mexer nas bolas jão, e pare de bulir com minha filha.” Era o que seu Salim dizia,
João sorria amarelo, e voltava para mesma de sinuca a fim de disputar a sexta partida, Chico comentava algo, João sorria mais uma vez, e se entreteciam no jogo até a partida final.
...
Quando já interava seis e pouco daquele dia, entrou no bar um pequeno menino, aparentava ter uns 8 anos, e de um jeito malandro começou a fitar todo o movimento, ele carregava no rosto uma grande cicatriz, que era coberta por seu loiro e desarrumado cabelo, a pele era queimada de sol, e as mãos completamente sujas, esfregavam as feridas que em um mar de erupção brotavam por todo o seu corpo.
O menino se aproximou do balcão, pediu a Salim uma caixa de fósforo, Salim se levantou com dificuldade foi até a terceira gaveta do armário, apanhou uma caixas de fósforo, se reaproximou do balcão e com a voz rouca disse.
“vinte cinco centavos.”
O menino sorriu sem graça, levou a mão no bolso direito, esperou, pensou mais um pouco, levou a outra mão no bolso esquerdo, esperou mais um pouco, sorriu... Bateu no balcão com a canhota espalmada... A retirou... E de baixo dela havia os 25 centavos.
Salim soltou a caixa, recolheu os 25 centavos e voltou à rede.
O menino continuava a fitar todos ali no bar, se acocorou no chão, com um rápido movimento arrancou um cigarro do bolso esquerdo, o pôs na boca com um semblante que só poderia significar felicidade, e com grande perecia se preparou para ascender o derby azul e completamente amassado.
Riscou o fósforo, e a chama se fez pequena, como se fosse uma daquelas que devemos emborcar para baixo de forma a fortalecer o fogo, ele não emborcou, e a chama do fósforo se esvaiu, como o sangue em uma menarca.
Ele se fez triste, como se tivesse ali perdendo alguém muito importante, se reposicionou contra o vento, de forma com que seu humilde corpo parasse o canal de ar, riscou mais uma vez o fósforo... a chama pegou, devagar e com pouca intensidade mais pegou, o menino sorriu, e naquela boca em ausência de pelos acendeu o cigarro com um trago confortante, sorriu mais um vez, e como se fosse para nos mostrar, soprou fumaça para cima da mesma sinuca, e com passos lentos se dirigiu até a, hora saída, hora entrada, porta do bar.
João quis falar, mais falar não pode, pois quem seria ele diante daquela criança que só queria reproduzir o que via nas ruas e nos filmes que provavelmente assistia na calçada de uma loja de eletrodomésticos qualquer, o que poderia dizer a aquela criança que era mais adulta que muitos barbados que estão por ai, o que poderia dizer para aquela criança se ele mesmo havia começado a fumar com aquela idade. O que poderia falar para aquela criança?
Chico quis brigar, mais brigar não pode, pois como poderia esmurrar um ser com menos de 35 quilos, como poderia brigar com alguém que dignamente compra seu cigarro e fogo sem amolar outros fumantes, e que mesmo criança sustenta seus vícios com dignidade, como poderia encostar-se a um ser tão purulento e maltratado por tantas erupções. Como poderia brigar com aquela criança?    
Salim quis não vender, mais não vender não pode, pois era da venda dos fósforos que vivia e sustentava toda sua família, eram aqueles vinte e cinco centavos que o permitiam alguns minutos de ócio em sua rede. Como poderia não vender para aquela criança?
Eu quis falar, brigar e vender, e tudo isso eu pude.
Larguei a 88 sobre o prato do chouriço que já havia sido metade carcomido e disse,
“Ei moleque, me da cigarro, porra”

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