terça-feira, 9 de novembro de 2010

Devaneios para o café da manhã. [A dama de espada]

Pi, pi.
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Pi, pi.
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Pi, pi.
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Pi, pi.
...

08:00 horas da manhã. Acordo com o barulho do despertador, mas permaneço com os olhos fechados. Em um suave movimento levanto minha mão esquerda e a posiciono acima da cabeça. Estico-a em direção ao criado mudo. Com a ponta do dedo indicador faço com que o barulho pare. Recolho minha mão fazendo meu cotovelo ranger, esfrego-a em meu cabelo e sinto os fios balançarem como as árvores em uma grande ventania. Acho bom.
Estalo os ossos do pescoço em movimentos horizontais. Cada estalo costumava me transportar para algum lugar de minha vida, guardada naquela caixa de sapatos velha que é nossa memória, esses barulhos graves lembram os roncos do estomago de alguém que muita fome passou, e cada estalo me leva para uma viagem diferente.
De una tempos para cá, os estalos me levavam para o mesmo lugar no mesmo tempo com as mesmas histórias.
No começo até achei bom, pois me lembrei de algo que a muito tempo não lembrava, o amor, mas depois de três ou quatro vezes comecei a me irritar.
Os devaneios matinais não mais que derrepente começaram a me levar as belas tardes passadas em São João Del Rey, comecei a conseguir ainda com os olhos fechados, me materializar em cima de um pé de jabuticaba com marcela, havíamos de nos encontrar mais uma vez antes da partida final, por que partir prima marcela, por quê?...



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Ai... Ai como gosto de jabuticaba. Como gosto daqueles olhos de jabuticaba. Como gosto de roubar jabuticaba de dentro dos olhos de jabuticabeira. Como gosto de roubar-te e ser roubado. Como gosto de amar-te em segredo, como gosto de jabuticaba.
Marcela era uma menina franzina com vistosas bochechas, a face rosada me remetia à cor do lombo assado para o natal. Ah marcela... ah lombo... Por que deus fez com que vocês só viessem uma vez por ano. Ah deus.
Todo ano a mesma coisa. Os cajuzinhos do cerrado maduravam, e marcela estava prestes a chegar. Mamãe corria com os afazeres, largava todos os serviços de nossa casa e corria pro retiro de baixo. Arrumava, arrumava, arrumava. A casa era grande, pouco mais de 68 passos de construção, devia ser toda varrida e encerada, as 17 janelas deviam ser polidas uma a uma, os quartos arrumados e arejados. Mamãe ficava encarregada de todos os serviços da casa, limpar, passar, arrumar, cozinhar e mais um pouco de tudo.
No quarto de padrinho Selorico Junqueira, a cama de casal devia ser esticada com o lençol branco banhado em sabão de dama da noite, os outros quartos deviam ser arrumados com o mesmo zelo e cada lençol tinha um cheiro diferente.
Para o quarto de Juca, o mais velho dos filhos de seu Selorico, o cheiro era de lavanda roxa, o cheiro o agradava, pois no auge dos seus 17 anos já se interessava em derrubar negrinhas da região. Caçava moças os três meses de veraneio inteiros, e por muitas vezes não tinha sucesso, pois não era o que podemos chamar de moço bonito, seu ar de gente branca da cidade incomodava os colonos, e principalmente as coloninhas da região, quando conseguia algo era por influência de seu pai.
Para o quarto de Lalado, o segundo da trupe, o cheiro devia ser de Urutu branco, pois esse já interava seus 15 anos e estava na travessia entre ser homem e tocar os negócios do pai ou brincar conosco os mais novos. O cheiro vermelho agradava meu nariz, lalado era dentre eles o que eu mais queria ser depois do padrinho Selorico, pois era comunicativo e forte, e com seus 15 anos já laçava e derruba boi na unha, Lalado sempre foi o mais simples dos filhos, sempre esteve presente nos currais e tronqueiras da região, deles era o mais querido dos Colonos .
No quarto de Maria, o cheiro era de rosas, essas deviam ser colhidas obrigatoriamente por mamãe, pois só ela conseguia identificar quais das rosas colher e despetalar para agradar o nariz tão fino e delicado dessa mocinha do arraial. O que padrinho Selorico não sabia é que esse nariz tão fino e delicado de Maria, que ele se gabava tanto de ter feito, cheirava outros roseirais com cheiros de suor de trabalho, nas embiras da região.
No quarto de marcela, marcela.... ah marcela, que cheiros bons tinha marcela.
No quarto de Benjamin o mais novo e mais perauta da turma cheiros não havia... não os havia pois ele tinha um desses problemas de cidade, que espirrava e pegava febrão a todo e qualquer cheiro que sentia, coitado de beijoca, que cores poderia enxergar se os cheiros não podiam sentir?
Mamãe gastava 3 dias duros de serviço na arrumação, meus irmão eram proibidos de entrar,  e a casa se findava em seu confinamento. Eu entrava, não por arte, mas entrava. Filho caçula tinha dessas coisas, sempre estava agarrado na saia de chita de minha mãe e por isso entrava.
 Seguia os quartos pelo cheiro achava o com cheiro de marcela do campo, e nesse entrava e sentava.
No ultimo e terceiro dia saia. Buscava uma flor bem vistosa no jardim e a posicionava em cima do travesseiro de marcela, sentava na beirada da varanda enquanto minha mãe preparava o almoço que esperava a chegada da tropa, passeava meus olhos por todo o terreiro, esbarrando por laranjas limas e limões galegos, me perdia num cochilo qualquer que não tardava a chegar....
Toda vez que chegava, sorria faceira, e assim que me via, abraçava. Abraçava-me com um abraço inocente, abraço de cúmplice, abraço de quem gosta de estar perto. Padrinho Selorico ria. Me estendia a mão, eu a beijava.

Bença, padrinho Selorico Mendes...

Deus te abençoe e cuida meu filho...

Dormia na varanda esperando o momento chegar. Essa chegada tinha hora certa e nunca falhava, o barulho de alho fritando se findava na panela de ferro e já se podia sentir os cheiros de angu, quiabo babado e carne de porco, mamãe finalizava o arroz, e enquanto servia a mesa já podia se avistar a rural descendo a serra.
A rural vinha lotada, as malas amassavam o teto verde e branco, os pneus enlameados faziam rastro por cima dos atoleiros de cavalo, ela roncava e soltava fumaça pelo ar, não mais que de repente quando a rural já estourava na porteira, podia se escutar o barulho da trupe, o sorriso nos rosto das crianças, tinha som de circo.

Ah como era bom as chegadas...

 Mas a chegadas nesta não veio. A chuva de setembro tardou em molhar o chão, o sol rachou a terra. O caju enfraqueceu e não floriu, os beija-flores não tiveram o prazer de beijar cada um delas, e dessa vez não veio. Marcela não veio. Não veio o cheiro, não veio às jabuticabas, não veio o sono. Não veio naquela tarde o café, o doce de leite nem muito menos o escutar falar da cidade grande. Não veio a lavanda ou urutu, nem rosas ou angu não veio.
Não veio marcela nem muito menos o não cheiro.
Não senti ali mais cheiros, não escutei mais vozes, não vi mais cores.
Chorei. Só chorei na varanda sozinho, vendo tropa diferente chegar.


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Por quê?

Por que essa falecida história voltava a me assolar? Esse menino havia morrido a pelo menos à 18 anos, quando abandonei as terras do maldito arrendatário que destruiu minha infância e meu único amor.
João de deus, esse era o nome do maldito homem que desgraçou toda uma vida. Dele já havia esquecido, como também esqueci de minha mãe, de marcela, do angu, do padrinho, do retiro, de tudo. Por que agora, quando respiro concreto, essa história tem que voltar? Vim para cidade justamente, pois ela esquece roça, por que voltaria agora quando aqui já estou?
Abro’s  olhos e me levanto, com a mão direito pego a carteira de cigarro posicionado atrás do despertador, bato a mão no peito afim de achar um isqueiro, mas estou sem camisa. Procuro um fósforo superficialmente sobre minhas coisas, encontro. Ascendo o cigarro. Faço dois ovos fritos e passa um café margoso, enquanto isso, abro lentamente as cartas do baralho de minha história para descobrir porque essa historia teria voltado.


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Fugi do retiro de baixo quatro anos depois que padrinho Selorico sumiu levando meu sorriso.
João de deus chegou com banca de magnata, em seis meses de estada lá, destruiu famílias inteiras e expulsou quase todos os colonos de suas novas terras
João de deus comprou as terras de Selorico a força, e como queria as terras para plantar eucalipto dispensou quase todos os colonos que lá estavam. O mercado da madeira estava em alta, pois a revolução de 30 acabara de transformar o país em um novo país. O desenvolvimento e o ruralismo de Getulio Vargas movimentavam a economia, e há de haver carvão para movimentar as maquinas.
Mamãe segurou nossa casa pela boca, pois era quitandeira de mão cheia e logo caiu nas graças do filho do capeta.
Eu o odiei desde a primeira vez que o vi, ele havia roubado meu maior e mais puro amor de criança e foi questão de tempo para juntar minhas coisas e de lá partir. Mamãe pedia respeito ao patrão, mas com três anos interei a adolescência e ninguém ali poderia mandar na minha vida mais do que eu.
Fugi para a cidade com 17 anos, levei comigo a roupa do corpo e comida não mais do que para três dias, fui atrás do padrinho, que devia-de ter sentado pouso em alguma cidade da região. Fui decidido na verdade em declarar meu amor velado por marcela e quem sabe casar e ter filhos como um cidadão de bem comum. Ledo engano, rodei por mais de um mês atrás dele no sul de minas e no interior de São Paulo e nada achei, passei fome, frio, e medo dormindo nas rodoviárias das cidades, até cogitei voltar, mas voltar não podia meu orgulho não deixaria.
Rodei, rodei e rodei. Até que em uma tarde do ano de 1938 em uma cidade qualquer do estado de São Paulo recebi um panfleto, o papel me parecia ser muito interessante e me prometia mundos e fundos.

                             
Sentei Praça em São Paulo, o quartel era vantajoso pra gente sem família e sem dinheiro, pois nos garantia comida e morada e um pequeno honorário que podia me salvar alguma hora.
Dois anos no quartel foram suficientes para perceber algumas coisas sobre da vida. As propagandas do governo nem sempre são verdade, os quartéis são sempre lotados de vagabundos e desempregados que necessitam comida e casa, as mulheres adoram homens de farda, e o mais importante, o jogo de baralho pode ser muito viciante e lucrativo.
No quartel, nas noites de sábado em que tínhamos folga, saímos para os bares da baixa são Paulo, logo me enturmei com um grupo de soldados que havia vindo de Montes Claros, nos enturmamos pelos sotaques, e foram esses que me apresentaram as mulheres pagas, e o poker.
Comecei perdendo tudo! O honorário do mês inteiro foi gasto em uma mesa. Cervejas e cigarros rolaram ali naquela que era a mesa da minha primeira vez. No começo não entendi muito bem, e apostava em toda e qualquer dupla de sete que aparecia na minha mão, confesso que a embriaguês pode ter ajudado em minha derrota avassaladora, mas a malicia das cartas só poderia vir com o tempo mesmo.
Resolvi jogar para recuperar meu honorário, a intenção inicial era essa, pois o jogo era simples e qualquer criança conseguiria aprender, o baralho que era usado ia de 7 aos Ás, sendo sua seqüência de força 7, 8, 9, 10, valete, dama, rei e Ás. As pessoas recebiam cinco cartas e poderiam por uma vez tentar uma troca com o monte do baralho. Uma dupla ganhava de dupla nenhuma, duas duplas ganhavam de uma dupla e de dupla nenhuma, uma trinca ganhava de duas duplas de uma dupla e de dupla nenhuma, uma seqüência com as cinco cartas na mão ganhava de todos os jogos anteriores, uma trinca e uma dupla na mão ao mesmo tempo, era chamada de “casa cheia” ganhava das seqüências, todas as cartas do mesmo nipe em sua mão era apelidada de “flash”, e ganhava da “casa cheia”, as cartas em seqüência do mesmo nipe era um jogão, e eram chamadas de “street flash”, só perdiam para o jogo principal que era quase impossível. O cardeal maior e mais difícil do jogo, era intitulado “Royal Stret flash”, e esse acabava com qualquer riqueza fama ou poder de um homem quando decidia enfrentá-lo, consistia em fazer uma seqüência de 10 à Ás, com as cinco cartas do mesmo nipe.  
Meus tempos livres no batalhão daí pra frente foram todos usados para esse jogo, jogava, jogava e jogava. Jogava sozinho, joga com um só parceiro, fazia e refazia partidas comigo mesmo, pedia conselhos e investia dinheiro nas rodas de sábado.
Foram alguns meses para parar de perder dinheiro e mais alguns meses para começar a ganhá-los, acho que sempre tive facilidade para aprender o errado, e com poker não foi diferente.
Seis meses já era reconhecido com o novo Ás de ouros da região, me chamavam de reco do poker, três de paus, Mazzaropi, general e por fim Maria fumaça de minas, e esse sim pegou.
Com o jogo vieram os vícios, comecei a fumar compulsivamente, e daí ganhei o apelido. Fumava para esconder as emoções, pois um bom jogador de poker joga sisudo e sério sempre  parecendo ter mais ou menos do que realmente tem.
Ganhei prestigio e mulheres com a jogatina e comecei a acumular dinheiro que nunca sonhei quando menino, as noites de sábado começaram a ficar curtas de mais, e até cogitei largar o exercito, mas aonde mais poderia trabalhar?....




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A comida bate no estomago junto ao tabaco, olho no pulso esquerdo que contem um grande relógio de ouro e percebo que já são 10:00 horas. Volto ao meu quarto e mando a moça qualquer que havia dormindo comigo por interesse da noite anterior se levantar, pego o que sobrou da grande mesa da noite passada e coloco em seu sutiã, ela sorri e ronrona como uma gata no cio, e me pergunta faceira se não queria algo mais. Olho para baixo e percebo que a ereção matinal ainda não havia se acalmado, e não há jeito melhor de gasta-la do que com uma boa trepada.     
Trepamos. E o gozar foi bom. Só que ele me fez lembrar do gozar na cara do comandante Fonseca, sair de baixo do coturno de um comandante quando se é reco, é quase melhor que o gozar.



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Em uma noite de sábado comandante Fonseca me chamou em sua sala, pensei que arrumaria problemas, mas não saberia que seriam tão bons. Fonseca ficou sabendo de minha fama, e queria por que queria me desafiar em uma partida, relutei muito até aceitar, pois saberia que isso poderia me ocasionar problemas.
Acabamos marcando uma partida para o sábado seguinte e o encontro seria em um bingo do capão, deveria levar dinheiro vivo e algumas carteiras de cigarro, pois ele prometia muito jogo.
Lá compareci sozinho, pois os amigos de Montes Claros a muito tinham sido transferidos, o lugar era separado do bingo, atrás de uma cortina verde havia uma mesa e lá Fonseca me esperava sentado. O comandante vestia um casaco caque de linho e me cumprimentou com um sorriso amarelo, uma áurea de fumaça de charuto cobria o recinto e Fonseca esperava ansiosamente minha chegada, sentei.
Fonseca botava banca de bom jogador e deixei-o realmente acreditar nisso, ele levou as três primeiras mãos com jogos baixos e isso o fez acreditar que me venceria, rearrumei meu jogo ao seu estilo e não foi difícil vencê-lo.
Jogamos por miseras quatro horas e sem falsa modéstia preciso confessar que o Fonseca não deu nem pro gasto. O comandante sem graça pediu para que conta fosse fechada, e fez questão de pagar, se levantou e me cumprimentou com um leve balançar de cabeça e disse que nos veríamos no quartel.
Ganhei do comandante geral do batalhão, e isso me gerou problemas, o valor recebido não era mais do que 10 honorários meus na época, mas a moral do general ficou ferida e ele transformou minha vida ali dentro em um inferno.
Necessitava sair dali, mas não sabia como me sustentar sem casa e comida, foi em uma das lavagens do banheiro do quartel, coincidentemente ao meu encargo, que percebi o óbvio.

Porra! Vou viver de poker caralho, jogando 6 vezes por semana consigo me sustentar e ainda me sobra um vintém.

Dei baixa no dia seguinte, me despedi do comandante com um singelo envelope em que devolvia metade do dinheiro que havia lhe ganhado honestamente, isso me doeu, mas só conseguiria a baixa se o ego daquele filio da puta fosse afagado.


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O jogo me havia feito esquecer da roça, de São João só me lembrava Del Rey. Mulheres bem tratadas da cidade embriagaram meus sentires, e agora só sentia os cheiros de fumaça, wishk e putas, não achava ruim, na verdade achava muito bom, a essa época marcela só significava pra min uma planta do campo qualquer da qual devia esquecer. 
Depois da trepada resolvo seguir caminho, a bela menina segue comigo até a rua são João, e com uma apertada em meus bagos despede-se. Agora são quase 11:00, quase a hora da primeira mesa do dia.


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Já havia largado o quartel a 4 anos, e lá não queria mais voltar.
Com um mês de baralho aluguei um quarto em uma pensão do bexiga, e com um pouco mais de 3 meses já havia comprado o cortiço pra mim.
De lá sai, um exímio jogador lá não poderia ficar, passava lá uma vez por mês, e recolhia o aluguel dos que lá moravam, fui para Ipiranga, em uma bela casa me assentei. A vizinhança branca, seguia seus afazeres de pequenos burgueses com trabalhos diurnos, e eu fazia crescer minha fama nas noites de São Paulo.
Corri esses quatro anos com jogadas históricas, joguei contra Tiririca, João de Deus, Rasga em baixo, Zé da lua, Mascatinho, Fafafa, Malagueta, Sopro frio, Três de Paus, Risadinha, Rei de Espada entre muitos outros. E deles tomei meu sustento e minha dignidade.
De certo perdi algumas vezes, há dias que não se dá pra jogar, eu insistia e perdia bem, mais as perdas nunca superaram os ganhos, e sempre tive sorte quando os valores eram grandes.


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Sigo caminhado pela avenida São João, os moços de paletó e gravata caminham perdidos pela hora do almoço, alguns descansam nos bares, outros dão dinheiro ao bixeiro da cidade fazendo uma fé ou no peru ou no pavão.
Eu sigo caminho, hoje tinha um jogo marcado em um hotel em que pouco já tinha jogado. O GRANDE HOTEL, era esse o seu nome, e ficava na altura da São Bento. Os convidados especiais não entravam pelo hall principal, tínhamos uma porta no fundo selecionada e vigiada para nós, essa mordomia acontecia, pois algumas das autoridade que passavam ali não podiam ser vistas ou reconhecidas.
Dessa vez levava pouco dinheiro em caixa, pois os acertos eram feitos individualmente depois do jogo. Fui convidado por João de deus, que disse que era uma barbada ganhar destes deputados que não poderiam aparecer para sociedade.
Dei a volta no grande hotel. Uma porta era vigiada por dois italianos, adentrei.
Passei por um pequeno bar onde poucas pessoas bebiam em uma luz muito baixa e amarela, fui até o atendente e pedi uma dose de gim, o pensamento repetitivo das manhãs voltara em minha cabeça, viro o copo em um gole só, o garçom ri. Peço um dose de wishk e ascendo o cigarro.
Sigo meu caminho até o jogo.
Subo uma escada, e travesso duas ou três portas normais até chegar numa grande e luxuosa porta de madeira, antes de bater ela se abriu, lá haviam 4 homens, João de deus e mais 3 homens gordos desses que aparecem nos jornais.
O mais falastrão de todos se levanta, a brilhantina em seu cabelo escorre, me abraça como se fossemos íntimos, fala algumas coisas que não consigo entender por estar concentrado em não encostar naquela maldita brilhantina, nos sentamos.
A mesa ia começar e os jogos eram altos, dessa vez teríamos alguém para embaralhar distribuir e trocar as cartas, isso era um luxo. João de deus me sorriu como cúmplice enquanto esperávamos o embaralhador chegar.
Os gordos falavam em política e de como eram bons em trair suas esposas, João de deus as vezes opinava, eu calado estava e calado fiquei apreciando meu delicioso cigarro.   
Tragava. O jato de fumaça em combustão soprava minha língua e fazia todas as papilas gustativas se ouriçarem.
Senti a grande porta de madeira abrir atrás mim, devia de ser o crupiê. Sorri, pois o jogo iria começar.
Um vento arrastado trouxe-me uma fragrância familiar, não demorei a perceber, o cheiro me lembrava da roça, me lembrava de São João, me remetia à dama da noite, a lavanda, a urutu, a rosa, ao não cheiro.
Era marcela, ah marcela, havia de ser marcela...
O que esse cheiro estaria fazendo perdido por aqui? Coragem de olhar para trás não tive. Escutei finos passos se aproximarem de minha mesa, eles vinham lentos e calmos, fiquei pasmo.
 A vista escureceu.
Quanto recobrei o olhar a moça estava lá. Como poderia não reconhecer. Como ela poderia não me reconhecer. Ah marcela, ah marcela, o que faria ali? Naquele covil de vagabundos. Agora os devaneios faziam sentido, agora o viajar se esclarecia, agora a premunição havia se concretizado.
Marcela, com pernas bambas e trem e tremulas entregou a primeira rodada de cartas, estava pálida como cera branca, e nenhuma palavra trocamos, só nos olhávamos nos olhos em um silencio envolvente que rasgava a sala nesse momento.      

   FUMAÇA, FUMAÇA...

Era minha vez de trocar cartas, ainda não tinha visto. Nem tempo para filar não tive, abri as cinco cartas desajeitadas em minhas mãos, duas damas um sete, um nove e um valete. Dispensei as três ultimas. Vieram mais três. Cartas dadas pela mão da mais divina dama do espaço.
Esperava outra dama, tanto na mesa quanto na vida e juntei as cartas com maestria.
Só queria ali naquele momento o fim do jogo, pois queria saber por onde andava marcela, o que acontecera com padrinho, e seus irmãos? Será que Juca estava preso por deflorar alguma moça sem sua permissão? Será que lalado continuava forte e simples como minha memória o guardava? Quantos filhos Maria havia de ter, frutos de embiras? Benjamin já conseguia ver as cores?
As perguntas eram todas, queria estar só com ela naquele momento.

PORRA FUMAÇA, VAI JOGAR OU VAI FICAR COM ESSA CARA DE BURRO QUANDO FOGE?

Nem olhar o jogo eu olhei, mas paguei as apostas mesmo assim, devia de haver alguma dama entre aquelas cartas tão bem distribuídas. O jogo seguiu. O gordo seboso também acreditou em sua mão e com um sorriso nojento também pagou a aposta.
João de deus se arrependeu e disse que o jogo era para cachorro grande, estava fora at´é da disputa.
O gordo sorriu e já com uma mão nas fichas mostrou as cinco cartas, uma bela mão, preciso confessar, para apostas tão altas ela caia muito bem.
Vi o jogão espalmado na mesma, uma casa cheia, de valete e 7. A trinca já não me servia, mas outra casa cheia me punha na mesa. Minhas pretensões eram maiores.
 Todos riram, e acharam que o jogo estava perdido.
Silencio.
Concentrei-me e mandei o gordo retirar as mãos das fichas. O jogo ainda não estava perdido.
 Puxei vagarosamente a carta de trás, o branco da carta custava a passar, a esquina desenhada me mostrava que era alguém da família, e um sorriso brotou no canto de minha boca. Puxei de uma vez só. Era o pai da dama. O que aquele rei estaria tramando por ali.
Coloqueio junto às duas damas, e parti com fome para próxima visada.
A cena se repetiu, a esquina me dava esperança, e outro rei me botava no jogo.  Foi o que aconteceu, fazia ali agora duas duplas, de dama e rei, e qualquer soma me faria vencer.
Todos na mesa esperavam apreensivos, e fui com certeza para a última carta.
Filei com parcimônia até o começo da quina aparecer, figura novamente, e isso me alegrou, puxei mas um pouco, entre os desenhos das roupas de aristocratas eu percebi brotar uma flor, flor que se escondia no cabelo da ultima dama, flor que naquele momento só me dava uma certeza. Aquela flor era de marcela. Flor de marcela do campo, linda e amarela como sempre foi.

Gargalhei muito alto. Abri o jogo espalmando minha não sobre a última carta, e como tortura a retirei a mão em um arrastar lento.
O brilhantina se descabelou, e soltou a frase que acabaria com seu maxilar e com nossa mesa.  
  


Três putas. Com essa aqui quatro, Assim você me arrebenta Fumacinha.
 (falava isso apontando para marcela)


 Não pensei duas vezes, arrebento sim.

Com os punhos fechados destrui dente por dente daquele maldito deputado, entre cutuveladas e pontapés destruiu-se toda a mesa, mas não se inteiraram 20 segundos para toda a sala estar completamente lotada por capangas.
Fui espancado, sangrado e carregado para fora. Sofri, mas deixei o seboso no chão.
O triste é que daquela mesa só levei a dama de espada que ainda segurava na mão, e alguns pontos e hematomas.
E marcela?
Marcela pra variar, não veio.