quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

De domingo a domingo.



De domingo a domingo.

Todos esses fatos aconteceram entre os dias 21 e 28 de novembro de 2010 no estado do Rio de Janeiro.


Manhã, em qualquer cobertura do Leblom.


Rolo na cama, uma incrível sede maltrata minha garganta, a noite de ontem foi pesada.
 Em um bar de botafogo ou Copacabana bebemos como se não houve-se amanhã.
Saímos de lá expulsou pelo garçom, ele nos serve todas as vezes que sentamos lá,
O seu nome, Não sei, só o chamo de bigode,
Ele nos trata bem, pois sabe que damos boas gorjetas, só que dessa vez queria fechar, disse que devia ir pra casa, pois havia deixado mulher e filhos sozinhos, pediu desculpa ao sair para o ponto de ônibus onde esperaria o da linha amarela.
 Dessa vez gorjeta não demos...
É realmente, deve ter sido em botafogo, desde que o dona marta foi ocupado passeamos sem medo por ali...
Estranho a essa hora ainda ninguém vir me chamar. Gosto do sol que entra pela janela no meu momento de alvorecer, me lembra meus fins de semana passados em Noronaha em que nada me tira do sério.
Levanto.                                      

O cheiro de almoço perfumeia a casa, Joana a nossa secretaria do lar cozinha enquanto vê um programa qualquer na televisão, me da um tímido bom dia, e pergunto se preciso de algo, logo a respondo que não, mais repito a frase que falo todos os dias.

Esses programas vão derreter seu cérebro
.
Sento-me e espero o café que Joana faz tão bem, Joana sempre cozinha calada, pois mamãe acha mais higiênico o cozinhar com a mente vazia, só que nesse dia Joana não o fez em silêncio.  
Me perguntou se tinha visto as ultimas noticias, eu disse que havia visto algo, ela perguntou se eu sabia onde morava, eu disse que não, ela  me contou que morava na penha e que estava preocupada em voltar pra casa, eu não entendi a afirmação, houve um silencio na cozinha.

...
Mas o que eu posso fazer Joana?

Mais um silêncio veio.

Você podia pedir a sua mãe para eu passar a noite aqui, eu fico no quartinho da bagunça e prometo não atrapalhar ninguém.

Mas lá num tem cama Joana. Como vai dormir.

Eu me viro Mauricio, na minha casa também não tem cama.

Vou ver o que posso fazer... mas só até essa bagunça acabar.

Não sei por que essa gente tem tanto medo, deve ser o espetáculo da televisão, ontem fiquei até as 6 da matina na rua e não vi nada acontecer, na verdade vi mais policia que o normal, e isso não é bom ?
Da cozinha gritei pra sala, onde minha mãe almoçava sua salada antes de ir para academia.

 mãeeê, a Joana pediu pra passar a noite aqui, pode?
 
Porque meu filho ela foi despejada de novo?

Não por que o lugar onde ela mora ta boladão, a senhora não viu na TV?

Vi sim, mas é só essa noite em Joana, minha casa não é pensão.

Sim senhora, pode deixar que amanhã eu já volto viu.


No final das contas seria bom a Joana dormir aqui... Posso passar no quarto dela antes de sair pra balada, afinal uma mão lava a outra, e as duas acabam me lavando.


Tarde em um escritório de Copacabana.




Depois do almoço sempre abro o jornal, gosto de ler enquanto assisto o programa do Wagner Montes.
Sento-me em minha poltrona reclinável de legitimo couro, aprecio as belas reportagens sobre política, economia o bem sucedido Eike Batista e meu grande fluzão.
Hoje Wagner está mais exaltado que o normal, grita esperneia e gesticula. Confesso que atrapalha minha leitura, mais quando me posiciono para desligar percebo que o deputado falava sério, o nosso grandioso Rio de Janeiro estava em caos...

Carros de cidadãos de bem pegando fogo, avenidas paradas, pretos, pobres e favelados nos noticiários, balas perdidas, reação do BOPE, policia nas ruas, propinas, prisões, tanques, exercito, marinha,  guerra, acho que vamos vencer, ninguém sai de casa, Ipanema vazia, praia deserta, mais um ônibus pegando fogo, lapa vazia, fuga de bandidos, conquista do morro, mídia, tiroteio, sangue.
Levanto de minha Poltrona.
Não poderia ficar ali parado, eu era um alvo muito fácil, empresário de meia idade que subiu na vida com o próprio suor e uma ajudinha dos outros não ficaria bem em uma camisa branca sorrindo ou como o nome de alguma instituição contra violência .
Tiro o telefone do gancho. A secretaria atende. Mando cancelar todos meus compromissos até o fim de semana, ela aceita sem exitar. Peço que ela ligue para minha mulher e filhos, para avisar que me esperem prontos as 16:00 em nossa casa. Assim ela faz.
Arrumo o escritório e desligo a TV. Cancelo os programas com as amantes mais intimas, e juntando minhas coisas mi dirijo para saída.
No corredor de saída encontro a secretaria, ela me olha confusa, digo que vou estar em ilha grande até a guerra acabar. E ela pergunta.

E eu doutor?

Você continua trabalhando até eu voltar, se precisar de algo me liga, e se algum desavisado chegar passa o meu telefone e manda o motorista levá-lo de volta?

Sim senhor, precisando de algo estou aqui.


Sigo caminho, mas um sopro de bondade atravessa meu coração, volto até a recepção do meu escritório olha as pernas da secretaria e digo

Só precisa vir amanha viu, pega a sexta de folga, o rio ta muito perigoso...?

Obrigado doutor.

Mas não se acostuma, essa semana é uma semana atípica.


Sigo caminho e rezo, rezo como só faço em momentos de tensão, para não ser parado por nem um bandido e ver um lindo carro pegando fogo.

Noite no asfalto do alemão





Precisávamos ir de noite...
Hoje era meu dia de folga. Havia segurado três plantões nessa semana, e pelo caos que estava no Rio de Janeiro, iria segurar mais um.
Um monte de carro queimado pela rua, o capitão descontrolado, os urubus midiáticos no nosso cangote, passantes na rua querendo justiça, Eduardo Paes na TV pedindo reforços.
Eu era ali mais uma peça do sistema, e só tinha uma opção, fazer todo o serviço sujo do estado.
Nos deram 800 páraquedistas do exército, 36 blindados, 400 policiais civis, 930 policiais militares, 270 policiais do BOPE, 9 helicópteros, e 6 tanque de guerra.
O que nos pediram em troca?
600 corpos no chão.
Mas Precisávamos ir de noite...

A TV falava em guerra, e duvidava de nossas atuações, mais toda corporação estava na rua e era o momento certo para atacar, o filme dos parceiros do BOPE acabara de ser lançado, e o único fio de esperança da classe média era na gente.
Podíamos subir e fazer o que quiser, valas seriam abertas e os 600 corpos que a maldita globo filmou na tomada do cruzeiro, já teriam seu repouso final, o asfalto era nossa trincheira, e os comandantes se fizeram presente.
Mas precisávamos ir de noite!
Policiais militares, o BOPE, os fuzileiros navais, a marinha, a guarda nacional e eu estávamos ali por um único motivo, fortalecer a industria da vela, colocando uma vela na mão de cada defunto que faríamos.
Mas para isso Precisávamos ir de noite...
Preparamos-nos para invasão, e pela mídia noticiamos a possibilidade de rendição.
A noite chegou e era aquela à nossa hora, mas rendição mesmo não houve.
O sangue escorria por ruas e vielas, o momento de subir era aquele. A noite nos protegia de tudo, éramos nós contra eles
E precisávamos subirir de noite...
Tomar o morro seria esplêndido precisávamos subir o complexo.
Mais precisávamos ir de noite...
Recolheríamos os corpos antes dos jornalistas chegarem, tudo seria limpo e os saques seriam bem sucedidos.
Mas Precisávamos ir de noite...

Não subiremos!

Essa foi à ordem geral dos capitães.

Subiremos de manha quando o sol altear e a audiência alcançar toda a população brasileira estaremos lá, levaremos bandeiras e blindados, e com maestria recuperaremos prestigio.



Tinha culpa eu do espetáculo ?
Acho que não... Mas o que eu não sabia é que foi esse dedo que puxa o gatilho que amarrou a bandeira bem no alto, mostrando para todo mundo quem era o responsável por aquele espetáculo...
O estado brasileiro.


Madrugada no alemão





A poça de sangue do Quase 13 começa a molhar minha havaiana, falei pra ele que hoje combate ia ser sinistro, um tiro de rifle na testa foi o suficiente para acabar com qualquer sonho de doutor. Mas o mulequin colou com o bonde porque quis, dinheiro, fama, droga mulher chama a atenção de qualquer um.
Sinto pena da mãe do muleque, mais antes ela chorando do que a minha.

SENTO O DEDO MENOR!!!!!!!!!!!!!!!! Na contenção, na contenção.

O Madrugadão ta tenso, não para de gritar com a rapaziada, juro que se sair daqui ele não grita mais comigo.

TA TA TA TA TA TA TA TATATATATATATATATA!

O filé com fritas e o café recolheram o corpo do quase treze, agora o que sobrava era a poça de sangue e seu rastro, o vermelho tingia o chão batido, e minha havaiana pingava sangue.

TA TA TA TA TA TA TA TATATATATATATATA!

Os cara tão subindo, e acho que daqui ninguém sai vivo.
A tensão durou bastante, mais por volta das 2 da matina o morro silenciou, a trégua duraria até o primeiro raio de luz ilumininar o mar  do Rio de Janeiro.
Quem fugiu, fugiu, quem não fugiu só resta combater ou fingir de morto. To com a arma engatilhada e daqui só sai o corpo.
Espero que possa ser enterrado, e que meu corpo não esteja desfigurado pela mão suja da policia.
De duas as três todos ficaram apreensivos, os corpos foram retirados, e os feridos tratados, os mais poderosos comeram, e nos passaram as migalhas, segurávamos a onda enquanto alguns dormiam. Nessas horas é necessário dormir de olhos abertos.
De três as quatro tudo estava mais calmo... o donos do morro preparavam a retirada, alguns com algum dote artístico se esconderam em casas de família, expulsando os trabalhadores e tomando seus lugares. Outros armaram uma passeata de paz na favela, com todos de branco seria fácil se disfarçar no meio da comunidade e a fuga seria perfeita, os nem tão importante assim se esgueirariam pelos canos de tubulação e com sorte e um pouco de sujeira estariam livres ao amanhecer.

E nós?

Nós devíamos ficar na contenção enquanto os grandes fugiam...
Varias perguntas podiam passar na minha cabeça naquele instante, por que estar ali, porque estar na contenção, por que...

Tempo pra responder não pude...
O primeiro raio de sol bateu na favela... agora era só uma questão de tempo.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Devaneios para o café da manhã. [A dama de espada]

Pi, pi.
...
Pi, pi.
...
Pi, pi.
...
Pi, pi.
...

08:00 horas da manhã. Acordo com o barulho do despertador, mas permaneço com os olhos fechados. Em um suave movimento levanto minha mão esquerda e a posiciono acima da cabeça. Estico-a em direção ao criado mudo. Com a ponta do dedo indicador faço com que o barulho pare. Recolho minha mão fazendo meu cotovelo ranger, esfrego-a em meu cabelo e sinto os fios balançarem como as árvores em uma grande ventania. Acho bom.
Estalo os ossos do pescoço em movimentos horizontais. Cada estalo costumava me transportar para algum lugar de minha vida, guardada naquela caixa de sapatos velha que é nossa memória, esses barulhos graves lembram os roncos do estomago de alguém que muita fome passou, e cada estalo me leva para uma viagem diferente.
De una tempos para cá, os estalos me levavam para o mesmo lugar no mesmo tempo com as mesmas histórias.
No começo até achei bom, pois me lembrei de algo que a muito tempo não lembrava, o amor, mas depois de três ou quatro vezes comecei a me irritar.
Os devaneios matinais não mais que derrepente começaram a me levar as belas tardes passadas em São João Del Rey, comecei a conseguir ainda com os olhos fechados, me materializar em cima de um pé de jabuticaba com marcela, havíamos de nos encontrar mais uma vez antes da partida final, por que partir prima marcela, por quê?...



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Ai... Ai como gosto de jabuticaba. Como gosto daqueles olhos de jabuticaba. Como gosto de roubar jabuticaba de dentro dos olhos de jabuticabeira. Como gosto de roubar-te e ser roubado. Como gosto de amar-te em segredo, como gosto de jabuticaba.
Marcela era uma menina franzina com vistosas bochechas, a face rosada me remetia à cor do lombo assado para o natal. Ah marcela... ah lombo... Por que deus fez com que vocês só viessem uma vez por ano. Ah deus.
Todo ano a mesma coisa. Os cajuzinhos do cerrado maduravam, e marcela estava prestes a chegar. Mamãe corria com os afazeres, largava todos os serviços de nossa casa e corria pro retiro de baixo. Arrumava, arrumava, arrumava. A casa era grande, pouco mais de 68 passos de construção, devia ser toda varrida e encerada, as 17 janelas deviam ser polidas uma a uma, os quartos arrumados e arejados. Mamãe ficava encarregada de todos os serviços da casa, limpar, passar, arrumar, cozinhar e mais um pouco de tudo.
No quarto de padrinho Selorico Junqueira, a cama de casal devia ser esticada com o lençol branco banhado em sabão de dama da noite, os outros quartos deviam ser arrumados com o mesmo zelo e cada lençol tinha um cheiro diferente.
Para o quarto de Juca, o mais velho dos filhos de seu Selorico, o cheiro era de lavanda roxa, o cheiro o agradava, pois no auge dos seus 17 anos já se interessava em derrubar negrinhas da região. Caçava moças os três meses de veraneio inteiros, e por muitas vezes não tinha sucesso, pois não era o que podemos chamar de moço bonito, seu ar de gente branca da cidade incomodava os colonos, e principalmente as coloninhas da região, quando conseguia algo era por influência de seu pai.
Para o quarto de Lalado, o segundo da trupe, o cheiro devia ser de Urutu branco, pois esse já interava seus 15 anos e estava na travessia entre ser homem e tocar os negócios do pai ou brincar conosco os mais novos. O cheiro vermelho agradava meu nariz, lalado era dentre eles o que eu mais queria ser depois do padrinho Selorico, pois era comunicativo e forte, e com seus 15 anos já laçava e derruba boi na unha, Lalado sempre foi o mais simples dos filhos, sempre esteve presente nos currais e tronqueiras da região, deles era o mais querido dos Colonos .
No quarto de Maria, o cheiro era de rosas, essas deviam ser colhidas obrigatoriamente por mamãe, pois só ela conseguia identificar quais das rosas colher e despetalar para agradar o nariz tão fino e delicado dessa mocinha do arraial. O que padrinho Selorico não sabia é que esse nariz tão fino e delicado de Maria, que ele se gabava tanto de ter feito, cheirava outros roseirais com cheiros de suor de trabalho, nas embiras da região.
No quarto de marcela, marcela.... ah marcela, que cheiros bons tinha marcela.
No quarto de Benjamin o mais novo e mais perauta da turma cheiros não havia... não os havia pois ele tinha um desses problemas de cidade, que espirrava e pegava febrão a todo e qualquer cheiro que sentia, coitado de beijoca, que cores poderia enxergar se os cheiros não podiam sentir?
Mamãe gastava 3 dias duros de serviço na arrumação, meus irmão eram proibidos de entrar,  e a casa se findava em seu confinamento. Eu entrava, não por arte, mas entrava. Filho caçula tinha dessas coisas, sempre estava agarrado na saia de chita de minha mãe e por isso entrava.
 Seguia os quartos pelo cheiro achava o com cheiro de marcela do campo, e nesse entrava e sentava.
No ultimo e terceiro dia saia. Buscava uma flor bem vistosa no jardim e a posicionava em cima do travesseiro de marcela, sentava na beirada da varanda enquanto minha mãe preparava o almoço que esperava a chegada da tropa, passeava meus olhos por todo o terreiro, esbarrando por laranjas limas e limões galegos, me perdia num cochilo qualquer que não tardava a chegar....
Toda vez que chegava, sorria faceira, e assim que me via, abraçava. Abraçava-me com um abraço inocente, abraço de cúmplice, abraço de quem gosta de estar perto. Padrinho Selorico ria. Me estendia a mão, eu a beijava.

Bença, padrinho Selorico Mendes...

Deus te abençoe e cuida meu filho...

Dormia na varanda esperando o momento chegar. Essa chegada tinha hora certa e nunca falhava, o barulho de alho fritando se findava na panela de ferro e já se podia sentir os cheiros de angu, quiabo babado e carne de porco, mamãe finalizava o arroz, e enquanto servia a mesa já podia se avistar a rural descendo a serra.
A rural vinha lotada, as malas amassavam o teto verde e branco, os pneus enlameados faziam rastro por cima dos atoleiros de cavalo, ela roncava e soltava fumaça pelo ar, não mais que de repente quando a rural já estourava na porteira, podia se escutar o barulho da trupe, o sorriso nos rosto das crianças, tinha som de circo.

Ah como era bom as chegadas...

 Mas a chegadas nesta não veio. A chuva de setembro tardou em molhar o chão, o sol rachou a terra. O caju enfraqueceu e não floriu, os beija-flores não tiveram o prazer de beijar cada um delas, e dessa vez não veio. Marcela não veio. Não veio o cheiro, não veio às jabuticabas, não veio o sono. Não veio naquela tarde o café, o doce de leite nem muito menos o escutar falar da cidade grande. Não veio a lavanda ou urutu, nem rosas ou angu não veio.
Não veio marcela nem muito menos o não cheiro.
Não senti ali mais cheiros, não escutei mais vozes, não vi mais cores.
Chorei. Só chorei na varanda sozinho, vendo tropa diferente chegar.


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Por quê?

Por que essa falecida história voltava a me assolar? Esse menino havia morrido a pelo menos à 18 anos, quando abandonei as terras do maldito arrendatário que destruiu minha infância e meu único amor.
João de deus, esse era o nome do maldito homem que desgraçou toda uma vida. Dele já havia esquecido, como também esqueci de minha mãe, de marcela, do angu, do padrinho, do retiro, de tudo. Por que agora, quando respiro concreto, essa história tem que voltar? Vim para cidade justamente, pois ela esquece roça, por que voltaria agora quando aqui já estou?
Abro’s  olhos e me levanto, com a mão direito pego a carteira de cigarro posicionado atrás do despertador, bato a mão no peito afim de achar um isqueiro, mas estou sem camisa. Procuro um fósforo superficialmente sobre minhas coisas, encontro. Ascendo o cigarro. Faço dois ovos fritos e passa um café margoso, enquanto isso, abro lentamente as cartas do baralho de minha história para descobrir porque essa historia teria voltado.


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Fugi do retiro de baixo quatro anos depois que padrinho Selorico sumiu levando meu sorriso.
João de deus chegou com banca de magnata, em seis meses de estada lá, destruiu famílias inteiras e expulsou quase todos os colonos de suas novas terras
João de deus comprou as terras de Selorico a força, e como queria as terras para plantar eucalipto dispensou quase todos os colonos que lá estavam. O mercado da madeira estava em alta, pois a revolução de 30 acabara de transformar o país em um novo país. O desenvolvimento e o ruralismo de Getulio Vargas movimentavam a economia, e há de haver carvão para movimentar as maquinas.
Mamãe segurou nossa casa pela boca, pois era quitandeira de mão cheia e logo caiu nas graças do filho do capeta.
Eu o odiei desde a primeira vez que o vi, ele havia roubado meu maior e mais puro amor de criança e foi questão de tempo para juntar minhas coisas e de lá partir. Mamãe pedia respeito ao patrão, mas com três anos interei a adolescência e ninguém ali poderia mandar na minha vida mais do que eu.
Fugi para a cidade com 17 anos, levei comigo a roupa do corpo e comida não mais do que para três dias, fui atrás do padrinho, que devia-de ter sentado pouso em alguma cidade da região. Fui decidido na verdade em declarar meu amor velado por marcela e quem sabe casar e ter filhos como um cidadão de bem comum. Ledo engano, rodei por mais de um mês atrás dele no sul de minas e no interior de São Paulo e nada achei, passei fome, frio, e medo dormindo nas rodoviárias das cidades, até cogitei voltar, mas voltar não podia meu orgulho não deixaria.
Rodei, rodei e rodei. Até que em uma tarde do ano de 1938 em uma cidade qualquer do estado de São Paulo recebi um panfleto, o papel me parecia ser muito interessante e me prometia mundos e fundos.

                             
Sentei Praça em São Paulo, o quartel era vantajoso pra gente sem família e sem dinheiro, pois nos garantia comida e morada e um pequeno honorário que podia me salvar alguma hora.
Dois anos no quartel foram suficientes para perceber algumas coisas sobre da vida. As propagandas do governo nem sempre são verdade, os quartéis são sempre lotados de vagabundos e desempregados que necessitam comida e casa, as mulheres adoram homens de farda, e o mais importante, o jogo de baralho pode ser muito viciante e lucrativo.
No quartel, nas noites de sábado em que tínhamos folga, saímos para os bares da baixa são Paulo, logo me enturmei com um grupo de soldados que havia vindo de Montes Claros, nos enturmamos pelos sotaques, e foram esses que me apresentaram as mulheres pagas, e o poker.
Comecei perdendo tudo! O honorário do mês inteiro foi gasto em uma mesa. Cervejas e cigarros rolaram ali naquela que era a mesa da minha primeira vez. No começo não entendi muito bem, e apostava em toda e qualquer dupla de sete que aparecia na minha mão, confesso que a embriaguês pode ter ajudado em minha derrota avassaladora, mas a malicia das cartas só poderia vir com o tempo mesmo.
Resolvi jogar para recuperar meu honorário, a intenção inicial era essa, pois o jogo era simples e qualquer criança conseguiria aprender, o baralho que era usado ia de 7 aos Ás, sendo sua seqüência de força 7, 8, 9, 10, valete, dama, rei e Ás. As pessoas recebiam cinco cartas e poderiam por uma vez tentar uma troca com o monte do baralho. Uma dupla ganhava de dupla nenhuma, duas duplas ganhavam de uma dupla e de dupla nenhuma, uma trinca ganhava de duas duplas de uma dupla e de dupla nenhuma, uma seqüência com as cinco cartas na mão ganhava de todos os jogos anteriores, uma trinca e uma dupla na mão ao mesmo tempo, era chamada de “casa cheia” ganhava das seqüências, todas as cartas do mesmo nipe em sua mão era apelidada de “flash”, e ganhava da “casa cheia”, as cartas em seqüência do mesmo nipe era um jogão, e eram chamadas de “street flash”, só perdiam para o jogo principal que era quase impossível. O cardeal maior e mais difícil do jogo, era intitulado “Royal Stret flash”, e esse acabava com qualquer riqueza fama ou poder de um homem quando decidia enfrentá-lo, consistia em fazer uma seqüência de 10 à Ás, com as cinco cartas do mesmo nipe.  
Meus tempos livres no batalhão daí pra frente foram todos usados para esse jogo, jogava, jogava e jogava. Jogava sozinho, joga com um só parceiro, fazia e refazia partidas comigo mesmo, pedia conselhos e investia dinheiro nas rodas de sábado.
Foram alguns meses para parar de perder dinheiro e mais alguns meses para começar a ganhá-los, acho que sempre tive facilidade para aprender o errado, e com poker não foi diferente.
Seis meses já era reconhecido com o novo Ás de ouros da região, me chamavam de reco do poker, três de paus, Mazzaropi, general e por fim Maria fumaça de minas, e esse sim pegou.
Com o jogo vieram os vícios, comecei a fumar compulsivamente, e daí ganhei o apelido. Fumava para esconder as emoções, pois um bom jogador de poker joga sisudo e sério sempre  parecendo ter mais ou menos do que realmente tem.
Ganhei prestigio e mulheres com a jogatina e comecei a acumular dinheiro que nunca sonhei quando menino, as noites de sábado começaram a ficar curtas de mais, e até cogitei largar o exercito, mas aonde mais poderia trabalhar?....




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A comida bate no estomago junto ao tabaco, olho no pulso esquerdo que contem um grande relógio de ouro e percebo que já são 10:00 horas. Volto ao meu quarto e mando a moça qualquer que havia dormindo comigo por interesse da noite anterior se levantar, pego o que sobrou da grande mesa da noite passada e coloco em seu sutiã, ela sorri e ronrona como uma gata no cio, e me pergunta faceira se não queria algo mais. Olho para baixo e percebo que a ereção matinal ainda não havia se acalmado, e não há jeito melhor de gasta-la do que com uma boa trepada.     
Trepamos. E o gozar foi bom. Só que ele me fez lembrar do gozar na cara do comandante Fonseca, sair de baixo do coturno de um comandante quando se é reco, é quase melhor que o gozar.



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Em uma noite de sábado comandante Fonseca me chamou em sua sala, pensei que arrumaria problemas, mas não saberia que seriam tão bons. Fonseca ficou sabendo de minha fama, e queria por que queria me desafiar em uma partida, relutei muito até aceitar, pois saberia que isso poderia me ocasionar problemas.
Acabamos marcando uma partida para o sábado seguinte e o encontro seria em um bingo do capão, deveria levar dinheiro vivo e algumas carteiras de cigarro, pois ele prometia muito jogo.
Lá compareci sozinho, pois os amigos de Montes Claros a muito tinham sido transferidos, o lugar era separado do bingo, atrás de uma cortina verde havia uma mesa e lá Fonseca me esperava sentado. O comandante vestia um casaco caque de linho e me cumprimentou com um sorriso amarelo, uma áurea de fumaça de charuto cobria o recinto e Fonseca esperava ansiosamente minha chegada, sentei.
Fonseca botava banca de bom jogador e deixei-o realmente acreditar nisso, ele levou as três primeiras mãos com jogos baixos e isso o fez acreditar que me venceria, rearrumei meu jogo ao seu estilo e não foi difícil vencê-lo.
Jogamos por miseras quatro horas e sem falsa modéstia preciso confessar que o Fonseca não deu nem pro gasto. O comandante sem graça pediu para que conta fosse fechada, e fez questão de pagar, se levantou e me cumprimentou com um leve balançar de cabeça e disse que nos veríamos no quartel.
Ganhei do comandante geral do batalhão, e isso me gerou problemas, o valor recebido não era mais do que 10 honorários meus na época, mas a moral do general ficou ferida e ele transformou minha vida ali dentro em um inferno.
Necessitava sair dali, mas não sabia como me sustentar sem casa e comida, foi em uma das lavagens do banheiro do quartel, coincidentemente ao meu encargo, que percebi o óbvio.

Porra! Vou viver de poker caralho, jogando 6 vezes por semana consigo me sustentar e ainda me sobra um vintém.

Dei baixa no dia seguinte, me despedi do comandante com um singelo envelope em que devolvia metade do dinheiro que havia lhe ganhado honestamente, isso me doeu, mas só conseguiria a baixa se o ego daquele filio da puta fosse afagado.


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O jogo me havia feito esquecer da roça, de São João só me lembrava Del Rey. Mulheres bem tratadas da cidade embriagaram meus sentires, e agora só sentia os cheiros de fumaça, wishk e putas, não achava ruim, na verdade achava muito bom, a essa época marcela só significava pra min uma planta do campo qualquer da qual devia esquecer. 
Depois da trepada resolvo seguir caminho, a bela menina segue comigo até a rua são João, e com uma apertada em meus bagos despede-se. Agora são quase 11:00, quase a hora da primeira mesa do dia.


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Já havia largado o quartel a 4 anos, e lá não queria mais voltar.
Com um mês de baralho aluguei um quarto em uma pensão do bexiga, e com um pouco mais de 3 meses já havia comprado o cortiço pra mim.
De lá sai, um exímio jogador lá não poderia ficar, passava lá uma vez por mês, e recolhia o aluguel dos que lá moravam, fui para Ipiranga, em uma bela casa me assentei. A vizinhança branca, seguia seus afazeres de pequenos burgueses com trabalhos diurnos, e eu fazia crescer minha fama nas noites de São Paulo.
Corri esses quatro anos com jogadas históricas, joguei contra Tiririca, João de Deus, Rasga em baixo, Zé da lua, Mascatinho, Fafafa, Malagueta, Sopro frio, Três de Paus, Risadinha, Rei de Espada entre muitos outros. E deles tomei meu sustento e minha dignidade.
De certo perdi algumas vezes, há dias que não se dá pra jogar, eu insistia e perdia bem, mais as perdas nunca superaram os ganhos, e sempre tive sorte quando os valores eram grandes.


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Sigo caminhado pela avenida São João, os moços de paletó e gravata caminham perdidos pela hora do almoço, alguns descansam nos bares, outros dão dinheiro ao bixeiro da cidade fazendo uma fé ou no peru ou no pavão.
Eu sigo caminho, hoje tinha um jogo marcado em um hotel em que pouco já tinha jogado. O GRANDE HOTEL, era esse o seu nome, e ficava na altura da São Bento. Os convidados especiais não entravam pelo hall principal, tínhamos uma porta no fundo selecionada e vigiada para nós, essa mordomia acontecia, pois algumas das autoridade que passavam ali não podiam ser vistas ou reconhecidas.
Dessa vez levava pouco dinheiro em caixa, pois os acertos eram feitos individualmente depois do jogo. Fui convidado por João de deus, que disse que era uma barbada ganhar destes deputados que não poderiam aparecer para sociedade.
Dei a volta no grande hotel. Uma porta era vigiada por dois italianos, adentrei.
Passei por um pequeno bar onde poucas pessoas bebiam em uma luz muito baixa e amarela, fui até o atendente e pedi uma dose de gim, o pensamento repetitivo das manhãs voltara em minha cabeça, viro o copo em um gole só, o garçom ri. Peço um dose de wishk e ascendo o cigarro.
Sigo meu caminho até o jogo.
Subo uma escada, e travesso duas ou três portas normais até chegar numa grande e luxuosa porta de madeira, antes de bater ela se abriu, lá haviam 4 homens, João de deus e mais 3 homens gordos desses que aparecem nos jornais.
O mais falastrão de todos se levanta, a brilhantina em seu cabelo escorre, me abraça como se fossemos íntimos, fala algumas coisas que não consigo entender por estar concentrado em não encostar naquela maldita brilhantina, nos sentamos.
A mesa ia começar e os jogos eram altos, dessa vez teríamos alguém para embaralhar distribuir e trocar as cartas, isso era um luxo. João de deus me sorriu como cúmplice enquanto esperávamos o embaralhador chegar.
Os gordos falavam em política e de como eram bons em trair suas esposas, João de deus as vezes opinava, eu calado estava e calado fiquei apreciando meu delicioso cigarro.   
Tragava. O jato de fumaça em combustão soprava minha língua e fazia todas as papilas gustativas se ouriçarem.
Senti a grande porta de madeira abrir atrás mim, devia de ser o crupiê. Sorri, pois o jogo iria começar.
Um vento arrastado trouxe-me uma fragrância familiar, não demorei a perceber, o cheiro me lembrava da roça, me lembrava de São João, me remetia à dama da noite, a lavanda, a urutu, a rosa, ao não cheiro.
Era marcela, ah marcela, havia de ser marcela...
O que esse cheiro estaria fazendo perdido por aqui? Coragem de olhar para trás não tive. Escutei finos passos se aproximarem de minha mesa, eles vinham lentos e calmos, fiquei pasmo.
 A vista escureceu.
Quanto recobrei o olhar a moça estava lá. Como poderia não reconhecer. Como ela poderia não me reconhecer. Ah marcela, ah marcela, o que faria ali? Naquele covil de vagabundos. Agora os devaneios faziam sentido, agora o viajar se esclarecia, agora a premunição havia se concretizado.
Marcela, com pernas bambas e trem e tremulas entregou a primeira rodada de cartas, estava pálida como cera branca, e nenhuma palavra trocamos, só nos olhávamos nos olhos em um silencio envolvente que rasgava a sala nesse momento.      

   FUMAÇA, FUMAÇA...

Era minha vez de trocar cartas, ainda não tinha visto. Nem tempo para filar não tive, abri as cinco cartas desajeitadas em minhas mãos, duas damas um sete, um nove e um valete. Dispensei as três ultimas. Vieram mais três. Cartas dadas pela mão da mais divina dama do espaço.
Esperava outra dama, tanto na mesa quanto na vida e juntei as cartas com maestria.
Só queria ali naquele momento o fim do jogo, pois queria saber por onde andava marcela, o que acontecera com padrinho, e seus irmãos? Será que Juca estava preso por deflorar alguma moça sem sua permissão? Será que lalado continuava forte e simples como minha memória o guardava? Quantos filhos Maria havia de ter, frutos de embiras? Benjamin já conseguia ver as cores?
As perguntas eram todas, queria estar só com ela naquele momento.

PORRA FUMAÇA, VAI JOGAR OU VAI FICAR COM ESSA CARA DE BURRO QUANDO FOGE?

Nem olhar o jogo eu olhei, mas paguei as apostas mesmo assim, devia de haver alguma dama entre aquelas cartas tão bem distribuídas. O jogo seguiu. O gordo seboso também acreditou em sua mão e com um sorriso nojento também pagou a aposta.
João de deus se arrependeu e disse que o jogo era para cachorro grande, estava fora at´é da disputa.
O gordo sorriu e já com uma mão nas fichas mostrou as cinco cartas, uma bela mão, preciso confessar, para apostas tão altas ela caia muito bem.
Vi o jogão espalmado na mesma, uma casa cheia, de valete e 7. A trinca já não me servia, mas outra casa cheia me punha na mesa. Minhas pretensões eram maiores.
 Todos riram, e acharam que o jogo estava perdido.
Silencio.
Concentrei-me e mandei o gordo retirar as mãos das fichas. O jogo ainda não estava perdido.
 Puxei vagarosamente a carta de trás, o branco da carta custava a passar, a esquina desenhada me mostrava que era alguém da família, e um sorriso brotou no canto de minha boca. Puxei de uma vez só. Era o pai da dama. O que aquele rei estaria tramando por ali.
Coloqueio junto às duas damas, e parti com fome para próxima visada.
A cena se repetiu, a esquina me dava esperança, e outro rei me botava no jogo.  Foi o que aconteceu, fazia ali agora duas duplas, de dama e rei, e qualquer soma me faria vencer.
Todos na mesa esperavam apreensivos, e fui com certeza para a última carta.
Filei com parcimônia até o começo da quina aparecer, figura novamente, e isso me alegrou, puxei mas um pouco, entre os desenhos das roupas de aristocratas eu percebi brotar uma flor, flor que se escondia no cabelo da ultima dama, flor que naquele momento só me dava uma certeza. Aquela flor era de marcela. Flor de marcela do campo, linda e amarela como sempre foi.

Gargalhei muito alto. Abri o jogo espalmando minha não sobre a última carta, e como tortura a retirei a mão em um arrastar lento.
O brilhantina se descabelou, e soltou a frase que acabaria com seu maxilar e com nossa mesa.  
  


Três putas. Com essa aqui quatro, Assim você me arrebenta Fumacinha.
 (falava isso apontando para marcela)


 Não pensei duas vezes, arrebento sim.

Com os punhos fechados destrui dente por dente daquele maldito deputado, entre cutuveladas e pontapés destruiu-se toda a mesa, mas não se inteiraram 20 segundos para toda a sala estar completamente lotada por capangas.
Fui espancado, sangrado e carregado para fora. Sofri, mas deixei o seboso no chão.
O triste é que daquela mesa só levei a dama de espada que ainda segurava na mão, e alguns pontos e hematomas.
E marcela?
Marcela pra variar, não veio.




terça-feira, 26 de outubro de 2010

O ultimo ci[garro] de Palha.

...Abaixou-se para ascender o cigarro, o cabelo lhe caiu sobre a face como era de costume, em um rápido movimento nem muito brusco nem muito sutil, arremessou a mecha para o quarto inferior de sua cabeça... Ascendia o cigarro naquele momento por um único motivo...




...
Todo dia a mesma história. Sempre terminava o almoço lá pelas 11:30, agradecia a patroa pelo tutu com torresmo, que freqüentemente era precedido por uma boa dose de cachaça no copo de bambu que repousava em cima da cristaleira. Levantava-se sem retirar o prato de esmalte da grande mesa da cozinha, andava sobre os tacos de “guatambu” que ele mesmo tinha assentado, recolhia um palito de dente estrategicamente posicionado no criado mudo da sala, Chegava à varanda, e com um movimento sutil, posicionava o palito nos lábios carnudos, sentava-se na cadeira de balanço herdada de seu avô, que uma vez posicionada debaixo da janela da cozinha, de lá nunca havia saído. Retirava o canivete de cabo de osso do bolso de sua calça, e com só uma mão o abria. Com dois movimentos de vai e vêm, limpava a lamina em sua calça, começava a picar o fumo sem pressa, e enquanto isso puxava algum assunto sem sentido com margarida sua esposa.
...
“Acho que hoje vai chover margarida”

“acho que não, as cigarras ainda nem começaram a cantar”

“é mais precisa chover pra elas cantar, e é preciso cantar pra elas chover...”

“Você sempre sabe de tudo né Nelson? E é por isso que esse ano estamos comprando feijão na mercearia né” 
(Margarida falava ironicamente.)
“Prôs quito, Margot” 
(Ele esbravejava.)
...

As palavras se desencontravam daí pra frente, margarida seguia para o quarto, e sob o som de algum bolero qualquer, que tocava na radio, chorava a falta dos filhos. Nelson continuava ali, e sentado sob a janela continuava a picar o fumo. Terminava. Retirava a botina suja de barro empurrando com a ponta dos pés a parte que fica no calcanhar, colocava o pé nu em contato com o chão seco, balbuciava algo sobre a falta de chuva, e com um lento e sistemático movimento, alcançava a palha que estava dentro do bolso da camisa, escolhia a melhor que tinha, mesmo sabendo que fumaria todas sem que nenhuma fosse descartada. Espreguiçava com as duas mão fechadas, prendendo em uma delas o fumo e na outra a palha escolhida. 

Retomava o serviço. Com aponta dos dedos pinçava a quantidade de fumo certa, e como o gado se aperta na sombra em dia de sol quente, ele apertava o fumo contra a palha. Rebolava o palheiro em dois ou três movimentos, ora fazendo pra cima, hora fazendo para baixo. Cerrava uma das pontas com uma dobra seca, e com o palito de dente que ainda repousava na boca, empurrava o fumo aparente pra dento.

Se levantava, fazia o caminho de volta para a cozinha enquanto passava pela sala via margarida chorar, nada fazia. Ia até o fogão a’lenha, procurava uma brasa, tentava pegar com a mão, e queimava-se, CRAMUNHÃO! Era o que gritava, o paieiro custava a ascender, mais com muito custo ascendia, a fumaça branca tomava conta de toda cozinha, nem mosquito nem mutuca sobrava ali por perto, o cheiro de fumo capoeirinha já podia ser sentido de longe.

Servia dois copos de café, um meio cheio e o outro meio vazio, botava o paieiro na boca e baforava, tossia. Segurava os dois copos na mão e como uma Maria fumaça que corta a serra atravessava a sala rumo ao quarto.

Era de costume entrar e oferecer o café e o ombro.

Era de costume ela aceitar.

Era de costume as conversas regadas a cafeína, nicotina e sorrisos.

Só que nesse dia seria diferente.


Nelson entrou pelo quarto, a fumaça traçou seu caminho, margarida o olhou, dessa vez não às enxugou, as lagrimas brotavam como em uma nascente vistosa, ele estranhou, o café sempre havia funcionado, por que não agora?

Baforava, e acada vez que a fumaça subia margarida chorava com mais intensidade, a fumaça subia, e ela chorava, a fumaça subia, ela chorava, subia, chorava, subia, chorava, subia, chorav...
Ele gritou! Os copos de café caíram no chão, e um som agudo cortou toda a casa.
Ela soluçou, e pranteou como se tivesse perdido um filho, ameaçou falar, se arrependeu, ensaiou mais algumas vezes enquanto ele balançava a cabeça em um movimento logituginal.

Por quê?
 (margarida olhava com um olhar de suplica)

Porque, o que, margarida?  
(Nelson respondia em tom sério, olhando margarida direto nos olho marejados)

Porque continua Nelson?(uma leve pausa no respirar) Por quê?

Continua o que margarida?
(Perguntou mais para ganhar tempo do que para outra coisa)

A fumar Nelson, dois enfisemas não foram suficientes?
(falava apontando o peito de Nelson)

Como parar margarida? Isso faz parte mim assim como você, pitar faz parte de mim assim como o sol faz parte da manha.

Nelson,(parou para soluçar) você faz parte de mim vivo e sabe que não dura mais um ano na toada que vem vindo,(soluçou de novo) por que continua?

Pronta margarida, parei! Esse é meu ultimo trago, por você faço tudo. (...até mentir... ele pensou.)

Margarida parou de chorar o abraçou com ternura, suas rugas encostavam umas nas outras, os dois choravam em uma em sintonia de quem espera a morte chegar... Ela seguiu a cozinha, ele saiu para horta.

Segurou o paieiro entre os dedos, o pressionou com bastante força, o apertou como forma de passagem para outro plano, o plano de sua própria cabeça. Quanto mais apertava mais lembrava, e o alembrar foi bom. Começou alembrarando dos anos passados juntos com margarida, lembrou de tudo que fizeram, os caminhos, as histórias, as tardes na roça, o casamento, os filhos, o envelhecer junto, a coivara, o chouriço, as criação, o levantar e dormir do dia-a-dia, o capinar, o namorar, o brigar, o colher, o plantar, as saídas para a cidade, o tomar café junto, o se chorar e se enxugar, o viver, o estar.

Parou de pensar.  

Com os olhos já secos abaixou-se para ascender o cigarro, o cabelo lhe caiu sobre a face como era de costume, em um rápido movimento nem muito brusco nem muito sutil, arremessou a mecha para o quarto inferior de sua cabeça... Ascendeu o cigarro naquele momento por um único motivo... Necessitava pensar...
...Pois como a boca necessita do beijo, seu pulmão já necessitava fumaça, essa era sua memória viva, era isso que o mantinha ali, era isso que ainda o ligava o mundo...
  

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Dia das [Cria]nças

Dia das [Cria]nças


...

Era uma noite normal, tudo estava no seu devido lugar.
Meu cotovelo surrado por um dia de trabalho repousava mais uma vez naquele balcão sujo do Armazém de seu Salim, havia pedido o de sempre, duas doses de 88 e um chouriço que provavelmente estava ali há mais de uma semana. Apreciava o chouriço, não por ter sido feito pelas mãos de uma das belas filhas do dono do bar, mais sim pelo seu delicioso gosto de ranço, que despistava o ardor daquele maldito vicio.
Tudo seguia normal, João e Chico jogavam suas 10 fichas de sinuca diárias, e entre uma tacada e outra comentavam algo sobre política nacional e suas convicções, os dois jogavam sempre, o placar sempre o mesmo, 6 a 4 ou 4 a 6, vez enquando empatavam, e isso gerava mais uma rodada, pois o empate ali não era permitido.
Nunca vi sentido em tal duelo, os dois sempre estavam lá nos mesmos horários, e todos os dias comentavam sobre as mesmas coisas, jogavam na mesma mesa, com os mesmos tacos, e dividiam a mesma cerveja sem variância de marca ou preço. Lá pela quinta partida João repousava o taco na beirada do balcão e enquanto reclamava da maldita sorte de Chico, pedia um copo de água da torneira para uma das filhas de seu Salim, fazia um comentário cretino para a moça, e recebia um olhar de reprovação de seu Salim, que à essa hora já repousava na rede  por traz do balcão.
“Vá mexer nas bolas jão, e pare de bulir com minha filha.” Era o que seu Salim dizia,
João sorria amarelo, e voltava para mesma de sinuca a fim de disputar a sexta partida, Chico comentava algo, João sorria mais uma vez, e se entreteciam no jogo até a partida final.
...
Quando já interava seis e pouco daquele dia, entrou no bar um pequeno menino, aparentava ter uns 8 anos, e de um jeito malandro começou a fitar todo o movimento, ele carregava no rosto uma grande cicatriz, que era coberta por seu loiro e desarrumado cabelo, a pele era queimada de sol, e as mãos completamente sujas, esfregavam as feridas que em um mar de erupção brotavam por todo o seu corpo.
O menino se aproximou do balcão, pediu a Salim uma caixa de fósforo, Salim se levantou com dificuldade foi até a terceira gaveta do armário, apanhou uma caixas de fósforo, se reaproximou do balcão e com a voz rouca disse.
“vinte cinco centavos.”
O menino sorriu sem graça, levou a mão no bolso direito, esperou, pensou mais um pouco, levou a outra mão no bolso esquerdo, esperou mais um pouco, sorriu... Bateu no balcão com a canhota espalmada... A retirou... E de baixo dela havia os 25 centavos.
Salim soltou a caixa, recolheu os 25 centavos e voltou à rede.
O menino continuava a fitar todos ali no bar, se acocorou no chão, com um rápido movimento arrancou um cigarro do bolso esquerdo, o pôs na boca com um semblante que só poderia significar felicidade, e com grande perecia se preparou para ascender o derby azul e completamente amassado.
Riscou o fósforo, e a chama se fez pequena, como se fosse uma daquelas que devemos emborcar para baixo de forma a fortalecer o fogo, ele não emborcou, e a chama do fósforo se esvaiu, como o sangue em uma menarca.
Ele se fez triste, como se tivesse ali perdendo alguém muito importante, se reposicionou contra o vento, de forma com que seu humilde corpo parasse o canal de ar, riscou mais uma vez o fósforo... a chama pegou, devagar e com pouca intensidade mais pegou, o menino sorriu, e naquela boca em ausência de pelos acendeu o cigarro com um trago confortante, sorriu mais um vez, e como se fosse para nos mostrar, soprou fumaça para cima da mesma sinuca, e com passos lentos se dirigiu até a, hora saída, hora entrada, porta do bar.
João quis falar, mais falar não pode, pois quem seria ele diante daquela criança que só queria reproduzir o que via nas ruas e nos filmes que provavelmente assistia na calçada de uma loja de eletrodomésticos qualquer, o que poderia dizer a aquela criança que era mais adulta que muitos barbados que estão por ai, o que poderia dizer para aquela criança se ele mesmo havia começado a fumar com aquela idade. O que poderia falar para aquela criança?
Chico quis brigar, mais brigar não pode, pois como poderia esmurrar um ser com menos de 35 quilos, como poderia brigar com alguém que dignamente compra seu cigarro e fogo sem amolar outros fumantes, e que mesmo criança sustenta seus vícios com dignidade, como poderia encostar-se a um ser tão purulento e maltratado por tantas erupções. Como poderia brigar com aquela criança?    
Salim quis não vender, mais não vender não pode, pois era da venda dos fósforos que vivia e sustentava toda sua família, eram aqueles vinte e cinco centavos que o permitiam alguns minutos de ócio em sua rede. Como poderia não vender para aquela criança?
Eu quis falar, brigar e vender, e tudo isso eu pude.
Larguei a 88 sobre o prato do chouriço que já havia sido metade carcomido e disse,
“Ei moleque, me da cigarro, porra”