sábado, 29 de janeiro de 2011

Aconselho a leitura do texto "O pão e a revolução" de Ferrez antes da leitura desse texto, mas se estiver sem tempo é nóis. linkhttp://ferrez.blogspot.com/2007/02/o-po-e-revoluo-ferrz.html

A aposentadoria de um flanelinha ou a Revolução.



...
Ei chefe certinho?
Pode vim, pode vim! 
Agora,DESFAZ, desfaz!
Fortalece ai doutor hoje eu ainda num almocei.
...

Nem a janela o filho da puta abriu... Deve ser mais um desses carros blindados que cada vez mais atrapalham nosso emprego.
A vida ta Foda...

A 10 anos atrás vigiar carro pra mim tava no auge, tirava quase um salário na rua, e conseguia levar dinheiro pra casa sem problema, juntando com um pouco que meu pai ainda tirava, agente até conseguia comer mistura duas vezes por semana.   
E agora?
Meu pai logo depois que eu comecei a vigiar largo o oficio, pra ele já num tava mais dando, enquanto eu com quase 10 anos tirava quase 30 reais  ele num tava tirando nem 10 conto.
Vida de flanela não é fácil, as vezes até parece que nosso oficio funciona em uma lógica inversa a de todos os outros trabalhos da sociedade. Quanto mais envelhecemos menos ganhamos, nada de ser promovido ou férias remuneradas, quanto mais barba no rosto e pele mal tratada de sol, menos as quantias ofertadas caem em nossas mãos.
Até sei que temos uma espécie de aposentadoria, pois quando ficamos velhos a dó de quem tem carro se iguala para eles como se fossem crianças, mais não quero esperar ter cabelos brancos para poder voltar a vigiar e ganhar os mesmos valores que ganhava quando comecei.


Eu agora já tenho 20, a barba na cara não da mais para esconder, e a mulecada que vigia carro aqui perto até ri quando uma patricinha qualquer arranca em velocidade quando eu me movimento para cobrá-la pelo serviço.
To tirando 15 reais por dia, e em alguns meses creio que vou chegar no mesmo limite que meu pai chegou, mais o mesmo fim que ele levou eu não quero. Ele começou a assaltar logo depois que ser flanela parou de ser viável, ele tinha família e filhos para criar, e em 3 anos juntou dinheiro para mudar de vida, mais não teve tempo para isso em um assalto mal sucedido foi pego, antes de planejar os dias na cadeia recebeu um tiro na nuca daqueles malditos policiais.
Penso em fazer um curso, sei lá, terminar o fundamental quem sabe, mas assim íamos sobreviver de que? Se é o dinheiro de flanela que sustenta minha casa.



Junto minhas coisas e resolvo sair, preciso pensar no que fazer, com pouco mais de 30 centavos no bolso, do um alô nos outros flanelinhas  e digo que o ponto ta livre por hoje, mas amanhã eu volto... Quem sabe...
Não tirei nem o do buzão, então caminho a pé em direção ao meu barraco. Atravesso quase toda cidade sem muita pressa no andar.
Os ponteiros quase já esbarravam no numero nove e o frio da noite me fez lembrar do vazio de minha barriga que não via nada desde o mesmo horário do dia anterior.
Quase no meio caminho resolvi tentar arrumar algo para comer, sabia que em casa não conseguiria mais que uma lata de sardinha, passei por uns três bares, e neles só se encontravam prostitutas e velhos aposentados que não me dariam mais do que o dedo do meio endurecido como resposta.
Passei ao lado de uma faculdade onde o pulsar revolucionário e o sentimento de retribuição social poderia me ajudar. Avistei dois rapazes, estavam sentados com uma coca-cola extremamente gelada em sua companhia.




 O cheiro da coca me fez lembrar dos tempos áureos em que como flanelinha havia conseguido muitos restos de comida vigiando carro na frente dos restaurantes, pois o meu semblante jovem e sofrido tocava até os mais malvados capitalistas.
Me aproximei lentamente, inventei uma dor na perna como um trunfo de piedade, pedi com um olhar resiguinado um pingado com pão a esses dois jovens, já esperava um não como resposta mas não poderia deixar de tentar.
Um dos playboys me perguntou com que eu queria meu pão, e por um breve momento achei que tinha vencido a batalha e poderia voltar a vigiar os carros fingindo ser coxo ou alejado, pois esses também são fatos que tocam os mais ricos.
Mais a pergunta foi retórica, sem escutar minha resposta o playboy veio com um discurso pronto que me deu o plano perfeito para aquele momento da minha vida.

Os jovens falavam de revolução, falavam que eu deveria estudar e estar pronto para as oportunidades que me aparecessem, falaram varias outras coisas que eu nem escutei, pois depois da primeira frase só me concentrava no plano.
Enquanto discursavam persiste em meu plano, respondia algumas vezes que só queria um pingado com pão enquanto me aproximava da mesa deles.
Alcancei a mesa e rapidamente me dirigi ao balcão.
O dono do bar entreviu em minha defesa e em um ato de bondade me ofereceu a comida, enquanto discutia com os dois pseudo intelectuais me serviu o pingado e logo trouxe o pão.
 Antes de pensar em sorrir pelo plano, tomei o pingado e segui com o pão já meio carcomido, agradeci o dono e quando me deslocava para rua balancei levemente a cabeça para os dois jovens revolucionários.
Sai do bar sem escutar o resto da conversa que parecia ter algo a ver com pesca ou peixe ou esmola quem sabe, algo que muito se escutou na época da implementação do fome zero ou do bolsa família.
As vozes gradualmente foram se esvaindo, a cada segundo se tornando mais baixas, e quando o silencio caótico de uma cidade retomou seu lugar consegui perceber, o plano foi cumprido.
Agora caminhava a passos largos para minha casa com muito mais do que a barriga cheia de um pingado com pão, caminhava para minha casa com muito mais do que uma idéia de revolução impregnada em minha cabeça, caminhava ali sim, com a barriga cheia de revolução, e essa foi a vantagem.
Saia de lá com a carteira e o celular dos dois jovens estudantes revolucionários com quem cruzei no bar, tenho certeza que pra eles não fará falta, pois a revolução é assim, quem tem MUITO deve ceder, nem que seja forçado a isso.
Tenho certeza que não se importaram, pois na carteira de um deles encontrei um bilhete que me legitimava, e nele tava escrito.

“Toda revolução é impossível até que se torne inevitável”.

Na boca da favela vendi os dois celulares, e agora tinha dinheiro para pensar no que fazer quando acordar amanhã.
Esperar o inevitável? Acho que não.