terça-feira, 26 de outubro de 2010

O ultimo ci[garro] de Palha.

...Abaixou-se para ascender o cigarro, o cabelo lhe caiu sobre a face como era de costume, em um rápido movimento nem muito brusco nem muito sutil, arremessou a mecha para o quarto inferior de sua cabeça... Ascendia o cigarro naquele momento por um único motivo...




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Todo dia a mesma história. Sempre terminava o almoço lá pelas 11:30, agradecia a patroa pelo tutu com torresmo, que freqüentemente era precedido por uma boa dose de cachaça no copo de bambu que repousava em cima da cristaleira. Levantava-se sem retirar o prato de esmalte da grande mesa da cozinha, andava sobre os tacos de “guatambu” que ele mesmo tinha assentado, recolhia um palito de dente estrategicamente posicionado no criado mudo da sala, Chegava à varanda, e com um movimento sutil, posicionava o palito nos lábios carnudos, sentava-se na cadeira de balanço herdada de seu avô, que uma vez posicionada debaixo da janela da cozinha, de lá nunca havia saído. Retirava o canivete de cabo de osso do bolso de sua calça, e com só uma mão o abria. Com dois movimentos de vai e vêm, limpava a lamina em sua calça, começava a picar o fumo sem pressa, e enquanto isso puxava algum assunto sem sentido com margarida sua esposa.
...
“Acho que hoje vai chover margarida”

“acho que não, as cigarras ainda nem começaram a cantar”

“é mais precisa chover pra elas cantar, e é preciso cantar pra elas chover...”

“Você sempre sabe de tudo né Nelson? E é por isso que esse ano estamos comprando feijão na mercearia né” 
(Margarida falava ironicamente.)
“Prôs quito, Margot” 
(Ele esbravejava.)
...

As palavras se desencontravam daí pra frente, margarida seguia para o quarto, e sob o som de algum bolero qualquer, que tocava na radio, chorava a falta dos filhos. Nelson continuava ali, e sentado sob a janela continuava a picar o fumo. Terminava. Retirava a botina suja de barro empurrando com a ponta dos pés a parte que fica no calcanhar, colocava o pé nu em contato com o chão seco, balbuciava algo sobre a falta de chuva, e com um lento e sistemático movimento, alcançava a palha que estava dentro do bolso da camisa, escolhia a melhor que tinha, mesmo sabendo que fumaria todas sem que nenhuma fosse descartada. Espreguiçava com as duas mão fechadas, prendendo em uma delas o fumo e na outra a palha escolhida. 

Retomava o serviço. Com aponta dos dedos pinçava a quantidade de fumo certa, e como o gado se aperta na sombra em dia de sol quente, ele apertava o fumo contra a palha. Rebolava o palheiro em dois ou três movimentos, ora fazendo pra cima, hora fazendo para baixo. Cerrava uma das pontas com uma dobra seca, e com o palito de dente que ainda repousava na boca, empurrava o fumo aparente pra dento.

Se levantava, fazia o caminho de volta para a cozinha enquanto passava pela sala via margarida chorar, nada fazia. Ia até o fogão a’lenha, procurava uma brasa, tentava pegar com a mão, e queimava-se, CRAMUNHÃO! Era o que gritava, o paieiro custava a ascender, mais com muito custo ascendia, a fumaça branca tomava conta de toda cozinha, nem mosquito nem mutuca sobrava ali por perto, o cheiro de fumo capoeirinha já podia ser sentido de longe.

Servia dois copos de café, um meio cheio e o outro meio vazio, botava o paieiro na boca e baforava, tossia. Segurava os dois copos na mão e como uma Maria fumaça que corta a serra atravessava a sala rumo ao quarto.

Era de costume entrar e oferecer o café e o ombro.

Era de costume ela aceitar.

Era de costume as conversas regadas a cafeína, nicotina e sorrisos.

Só que nesse dia seria diferente.


Nelson entrou pelo quarto, a fumaça traçou seu caminho, margarida o olhou, dessa vez não às enxugou, as lagrimas brotavam como em uma nascente vistosa, ele estranhou, o café sempre havia funcionado, por que não agora?

Baforava, e acada vez que a fumaça subia margarida chorava com mais intensidade, a fumaça subia, e ela chorava, a fumaça subia, ela chorava, subia, chorava, subia, chorava, subia, chorav...
Ele gritou! Os copos de café caíram no chão, e um som agudo cortou toda a casa.
Ela soluçou, e pranteou como se tivesse perdido um filho, ameaçou falar, se arrependeu, ensaiou mais algumas vezes enquanto ele balançava a cabeça em um movimento logituginal.

Por quê?
 (margarida olhava com um olhar de suplica)

Porque, o que, margarida?  
(Nelson respondia em tom sério, olhando margarida direto nos olho marejados)

Porque continua Nelson?(uma leve pausa no respirar) Por quê?

Continua o que margarida?
(Perguntou mais para ganhar tempo do que para outra coisa)

A fumar Nelson, dois enfisemas não foram suficientes?
(falava apontando o peito de Nelson)

Como parar margarida? Isso faz parte mim assim como você, pitar faz parte de mim assim como o sol faz parte da manha.

Nelson,(parou para soluçar) você faz parte de mim vivo e sabe que não dura mais um ano na toada que vem vindo,(soluçou de novo) por que continua?

Pronta margarida, parei! Esse é meu ultimo trago, por você faço tudo. (...até mentir... ele pensou.)

Margarida parou de chorar o abraçou com ternura, suas rugas encostavam umas nas outras, os dois choravam em uma em sintonia de quem espera a morte chegar... Ela seguiu a cozinha, ele saiu para horta.

Segurou o paieiro entre os dedos, o pressionou com bastante força, o apertou como forma de passagem para outro plano, o plano de sua própria cabeça. Quanto mais apertava mais lembrava, e o alembrar foi bom. Começou alembrarando dos anos passados juntos com margarida, lembrou de tudo que fizeram, os caminhos, as histórias, as tardes na roça, o casamento, os filhos, o envelhecer junto, a coivara, o chouriço, as criação, o levantar e dormir do dia-a-dia, o capinar, o namorar, o brigar, o colher, o plantar, as saídas para a cidade, o tomar café junto, o se chorar e se enxugar, o viver, o estar.

Parou de pensar.  

Com os olhos já secos abaixou-se para ascender o cigarro, o cabelo lhe caiu sobre a face como era de costume, em um rápido movimento nem muito brusco nem muito sutil, arremessou a mecha para o quarto inferior de sua cabeça... Ascendeu o cigarro naquele momento por um único motivo... Necessitava pensar...
...Pois como a boca necessita do beijo, seu pulmão já necessitava fumaça, essa era sua memória viva, era isso que o mantinha ali, era isso que ainda o ligava o mundo...
  

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Dia das [Cria]nças

Dia das [Cria]nças


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Era uma noite normal, tudo estava no seu devido lugar.
Meu cotovelo surrado por um dia de trabalho repousava mais uma vez naquele balcão sujo do Armazém de seu Salim, havia pedido o de sempre, duas doses de 88 e um chouriço que provavelmente estava ali há mais de uma semana. Apreciava o chouriço, não por ter sido feito pelas mãos de uma das belas filhas do dono do bar, mais sim pelo seu delicioso gosto de ranço, que despistava o ardor daquele maldito vicio.
Tudo seguia normal, João e Chico jogavam suas 10 fichas de sinuca diárias, e entre uma tacada e outra comentavam algo sobre política nacional e suas convicções, os dois jogavam sempre, o placar sempre o mesmo, 6 a 4 ou 4 a 6, vez enquando empatavam, e isso gerava mais uma rodada, pois o empate ali não era permitido.
Nunca vi sentido em tal duelo, os dois sempre estavam lá nos mesmos horários, e todos os dias comentavam sobre as mesmas coisas, jogavam na mesma mesa, com os mesmos tacos, e dividiam a mesma cerveja sem variância de marca ou preço. Lá pela quinta partida João repousava o taco na beirada do balcão e enquanto reclamava da maldita sorte de Chico, pedia um copo de água da torneira para uma das filhas de seu Salim, fazia um comentário cretino para a moça, e recebia um olhar de reprovação de seu Salim, que à essa hora já repousava na rede  por traz do balcão.
“Vá mexer nas bolas jão, e pare de bulir com minha filha.” Era o que seu Salim dizia,
João sorria amarelo, e voltava para mesma de sinuca a fim de disputar a sexta partida, Chico comentava algo, João sorria mais uma vez, e se entreteciam no jogo até a partida final.
...
Quando já interava seis e pouco daquele dia, entrou no bar um pequeno menino, aparentava ter uns 8 anos, e de um jeito malandro começou a fitar todo o movimento, ele carregava no rosto uma grande cicatriz, que era coberta por seu loiro e desarrumado cabelo, a pele era queimada de sol, e as mãos completamente sujas, esfregavam as feridas que em um mar de erupção brotavam por todo o seu corpo.
O menino se aproximou do balcão, pediu a Salim uma caixa de fósforo, Salim se levantou com dificuldade foi até a terceira gaveta do armário, apanhou uma caixas de fósforo, se reaproximou do balcão e com a voz rouca disse.
“vinte cinco centavos.”
O menino sorriu sem graça, levou a mão no bolso direito, esperou, pensou mais um pouco, levou a outra mão no bolso esquerdo, esperou mais um pouco, sorriu... Bateu no balcão com a canhota espalmada... A retirou... E de baixo dela havia os 25 centavos.
Salim soltou a caixa, recolheu os 25 centavos e voltou à rede.
O menino continuava a fitar todos ali no bar, se acocorou no chão, com um rápido movimento arrancou um cigarro do bolso esquerdo, o pôs na boca com um semblante que só poderia significar felicidade, e com grande perecia se preparou para ascender o derby azul e completamente amassado.
Riscou o fósforo, e a chama se fez pequena, como se fosse uma daquelas que devemos emborcar para baixo de forma a fortalecer o fogo, ele não emborcou, e a chama do fósforo se esvaiu, como o sangue em uma menarca.
Ele se fez triste, como se tivesse ali perdendo alguém muito importante, se reposicionou contra o vento, de forma com que seu humilde corpo parasse o canal de ar, riscou mais uma vez o fósforo... a chama pegou, devagar e com pouca intensidade mais pegou, o menino sorriu, e naquela boca em ausência de pelos acendeu o cigarro com um trago confortante, sorriu mais um vez, e como se fosse para nos mostrar, soprou fumaça para cima da mesma sinuca, e com passos lentos se dirigiu até a, hora saída, hora entrada, porta do bar.
João quis falar, mais falar não pode, pois quem seria ele diante daquela criança que só queria reproduzir o que via nas ruas e nos filmes que provavelmente assistia na calçada de uma loja de eletrodomésticos qualquer, o que poderia dizer a aquela criança que era mais adulta que muitos barbados que estão por ai, o que poderia dizer para aquela criança se ele mesmo havia começado a fumar com aquela idade. O que poderia falar para aquela criança?
Chico quis brigar, mais brigar não pode, pois como poderia esmurrar um ser com menos de 35 quilos, como poderia brigar com alguém que dignamente compra seu cigarro e fogo sem amolar outros fumantes, e que mesmo criança sustenta seus vícios com dignidade, como poderia encostar-se a um ser tão purulento e maltratado por tantas erupções. Como poderia brigar com aquela criança?    
Salim quis não vender, mais não vender não pode, pois era da venda dos fósforos que vivia e sustentava toda sua família, eram aqueles vinte e cinco centavos que o permitiam alguns minutos de ócio em sua rede. Como poderia não vender para aquela criança?
Eu quis falar, brigar e vender, e tudo isso eu pude.
Larguei a 88 sobre o prato do chouriço que já havia sido metade carcomido e disse,
“Ei moleque, me da cigarro, porra”

domingo, 10 de outubro de 2010

Coti[dia]no

Coti[dia]no

Acordo mais uma vez sobre um lençol roxo, quase em hora de trocar, o maldito gosto de guarda-chuva me faz lembrar da noite anterior. Mais um porre de um destilado qualquer, em que fui me misturando ao belos e finos champanhes de uma festa rica desta cidade quadrada .

O que me faria feliz? Na verdade varias coisas, o acordar junto seria ótimo, ter alguém para roubar o lençol na boca da manhã seria magnífico.

Mas isso não tinha, por uma mistura de opção e destino acordava mais uma vez só, como a Joana de barro que após a traição se enclausura na mistura de barro e palha de sua ultima morada.
Luta para levantar foi tremenda, digna de qualquer batalha no sertão, em que quanto mais se empurra mais ela te arrodeia por traz. Levantei, e senti o doce e amargo frio do chão.

O que me faria feliz? Provavelmente o exorcismo deste maldito gosto de guarda-chuva da minha boca.

Caminhei até o banheiro, e sobre essa pista de gelo deslizei até de baixo da cachoeira enjaulada. A torneira rodou como as cirandas de uma festa popular qualquer, e a água  banhou meu corpo em um deslizar arrepiante, tempo de ensaboar não tive, não tive ou não quis, tanto faz, não importa.
Segui nu até a tolha, e gotejante fiz um rastro d’água por toda a sala, rastro esse que provavelmente deveria secar mais tarde, mais agora nisso não pensava.

O que me faria feliz? A liberdade de poder deixar rastros no mundo sem que isso me incomoda-se.

Vesti o pequeno short que já usara durante um mês, e sem camisa segui para a cozinha buscando o que comer. O relógio marcava três horas e cinqüenta e cinco minutos, pensei em almoçar, mais não poderia sem antes dejejuar o meu primeiro café com cigarros do dia.

O que me faria feliz? Cigarros infinitos, para que nunca mais eles pensem em faltar.

Passei um café amargo em um coador que já não era limpo a algumas semanas, café novo, nem  gastou muito, coisa de duas ou três colheres meio cheias ou meio vazias tanto faz.
Com o café pronto me dirigi até a sala, e sobre o rastro de água que havia deixado mais cedo me sentei, o chão ainda úmido molhou minhas parte, isso me irritou em um primeiro momento, mais depois percebi o quanto era bom.

O que me faria feliz? Mais chãos úmidos em contato com meu robusto corpo.

Acendi um cigarro, e o cheiro de tabaco queimado embriagou-me como os destilados da noite anterior, senti a fumaça branca escorregar por minha garganta até meu pulmão.  Me senti feliz por estar contrariando as recomendações do ministério da saúde, mais feliz ainda por contrariar um presidenciável hipocondríaco qualquer, que pretenda fascistamente proibir o consumo desta dádiva divina que é o tabaco.

O que me faria feliz? A morte deste maldito presidenciável hipócrita e nojento.

Ao fim do quinto cigarro me levantei, levando o copo do café para a cozinha, com uma rápida olhada no relógio percebi que já eram seis horas e trinta e cinco minutos, com um curto e áspero “Porra!”, lembrei  que deveria sair de casa antes que os cobradores viessem cobrar dividas de jogo passadas.   

O que me faria feliz? Não ser viciado em jogos de azar ou sorte, tanto faz.

Sai de casa mais uma vez, e rumo a mais algumas garrafas de destilados qualquer, parti, sem almoço nem janta, para mais uma noite de disfarce nesta maldita cidade onde nem crianças nem velhos transitam em seu seio.

O que me faria feliz? Um cotidiano menos cotidiano.